9 de abril de 2011

REMEXER NAS CINZAS, ATIÇAR O FOGO (II)




2010: Parte segunda 


Torres Vedras 2011, a Herança

A Terceira Cama poderia ser título para um thriller. Mas a adenda da FPX à obra “Regulamento dos Campeonatos Nacionais de Jovens e de Veteranos – 2011” faz mais género romântico, a roçar o bucólico. 

Esta curta-metragem dos estúdios da Francisco Foreiro avisa desde logo os incautos (poder) “levar a interpretações diversas”, preambula por quartos, camas, acompanhantes e crianças e desagua em piscinas e taxa para toalhas.  

Para quem deseje desintoxicar-se da modalidade são sugeridas Clínicas de Golfe, a 7,20 euros hora e para quem queira polir as hemorróidas, saltando das salas às selas, há passeios a Cavalo a 25 euros hora ou Picadeiro a 18. Para os mais exigentes é sugerida uma SPA Experience (Massagens e tratamentos, Sauna e Banho Turco) em condições especiais. 

Como neste “folheto” não se fala explicitamente de xadrez está desculpada a inexistência de psiquiatras e psicanalistas (o divã dá jeito) na oferta hoteleira. 

Há sim um parágrafo em que a organização ameaça “realizar algumas acções ligadas à modalidade” extensivas aos acompanhantes que serão oportunamente divulgadas. Não sendo (porventura) uma sessão de bingo, um quiz ou uma batida aos gambozinos, será que se trata de relançamentos promocionais de papel por reciclar?

Se há um contingente de “atletas” até aos 20 anos e outro a partir dos 60 (ou 50 no feminino; porquê?), o “público alvo” situar-se-á neste intervalo dos 35 ala arriba. Supondo é claro que os presumíveis xadrezistas só terão para lazer uma manhã e quatro noites. E que vão até lá para jogar xadrez.

Se lhes apetecer passar algum tempo na sala de torneio a organização oferece-lhes duas jornadas com sessões duplas (manhãs e tardes de Segunda e Quarta-Feira), outra na tarde do dia de chegada (Domingo) e outra na manhã do dia de encerramento (Quinta-Feira). Tudo aponta, portanto, para que os sibaritas já tenham esgotado as reservas de golfe e hipismo para a manhã de Terça-Feira, dia em que os jogos só se efectuam da parte da tarde.

Pode, também, entreter-se com o charadismo. Analisando as redundâncias salpicadas pelo escriba no regulamento da prova. Por exemplo: no ponto 4.4 lê-se: “Uma vez terminada a partida, os jogadores têm de abandonar a zona de jogo, e passam a funcionar como público”; e em 8.7 insiste-se: “Quando um jogador termine a sua partida e após concluídos os procedimentos regulamentares de apresentação de resultados é obrigado a abandonar de imediato a zona de jogo, passando a ser considerado como parte do público”. Deve ser para os mais distraídos. E se calhar até distribuem bandeirinhas para as claques… Mas não é exactamente assim, pois um pouco antes, está 8.3 “Um jogador não pode abandonar em caso algum a zona de jogo sem consultar a equipa de arbitragem sobre a sua apresentação ao controlo antidopagem”. Seguindo-se um rol de ameaças. E lá está, para os duros de ouvido, com honras de parágrafo próprio o 12, repete-se a ladnha: “Em cada um dos dias de jogo, todos os participantes deverão, no final da sua partida e antes de abandonarem a sala de jogo, consultar a Equipa de Arbitragem sobre a sua apresentação ao controlo antidopagem” rematada com novas pragas. 

Mas deixemos as chachadas e vamos às questões de fundo. Que a FPX considere que os jovens com que conta praticam um xadrez, digamos, superficial, marcando sessões para as 10 horas e outra para as 16.30, com o almoço pelo meio é lá com eles. Reflexos rápidos, jogos apressados ou curtos e dispensa de preparação, pode aceitar-se nas camadas mais jovens, embora com protestos de alguns mestres, mas definitivamente não nas outras.


Títulos tóxicos

Acho muito bem que se organizem torneios abertos a par com os campeonatos nacionais para jovens. Isso ajuda a distrair os papás e os avozinhos das mesas dos miúdos, evitando pressões e macacadas, que por vezes se dão, por cruzamento de olhares e linguagem gestual indevida “incentivando” (que indicar é feio) os petizes a executar planos e lances “óbvios” no entender dos seus treinadores de bancada. 

Estes torneios paralelos, com algumas jornadas com sessões duplas, foram um êxito nos já “longínquos” campeonatos por equipas que se disputaram em Évora. E outros opens do género que, felizmente, continuam a ser organizados pelo país fora, preenchendo fins-de-semana de xadrez e turismo (ou pelo menos de mudança-de-ares). Mas são o que são: para descontrair; e não devem ter outras pretensões.

Agora o que é francamente negativo é que uma prova assim sirva para nacional de veteranos. Nem para campeonato de veteranos nem para nacional de juniores (sub-20). Estes dois escalões têm outros pergaminhos. E é de supor um nível de jogo de maturidade muito superior aos de faixas etárias inferiores. A FIDE promove-os independentemente e separa-os do bloco dos restantes festivais para jovens. A FPX também fazia isso. Tratava-os com respeito: uma sessão por dia. 

Ao compactar estas provas, nos últimos quatro anos, a explicação mais à mão é a económica. Com os mesmos árbitros (ou quase) e as mesmas chatices de organização, despacha-se tudo em cinco dias. Com uma só paulada, marcham três coelhos… Mas isto é lesa modalidade.


Navegar é preciso

A função básica da FPX é coordenar e fomentar o xadrez. O resto vem por acréscimo: representatividade interna e externa, regulação da actividade, atestar a força dos praticantes (por elos e títulos) e pretender ser intermediária idónea entre patrocinadores (públicos ou privados) e os seus associados. E por aí fora.

O fomento do xadrez carece essencialmente de divulgação e do seu braço armado: a propaganda. Não é eficaz pregar as regras e virtudes do jogo sem um sermão prévio para aragem do terreno. As notícias que relatam as peripécias dos torneios, acompanhados pelos meios de comunicação social (agências, tv, rádio e jornais), sempre foram a varinha de condão com que se despertava o interesse pela modalidade junto do “grande público” (passe a expressão). Logo quanto mais vezes se justifique noticiar xadrez a mais “alvos” ele chega.  

Ao empastelar tudo a FPX está a reduzir a um terço (ou menos) a campanha “publicitária” que aquele conjunto heterogéneo de provas poderia proporcionar. Para além de outros erros de foro jornalístico (onde a identificação, proximidade e individualização contam) que se reflectem na balança para o alheamento dos eventos. E ainda se queixam…

E depois há este púlpito demoníaco que é a internet. Que possibilita que as partidas de xadrez possam ser seguidas lance por lance, em tempo real, praticamente sem custos, adquirido o material. E a FPX que dispõe de tecnologia para acompanhar umas duas dezenas (creio) de partidas em simultâneo dá-se ao luxo de demasiadas vezes falhar as transmissões e não investir em soluções (humanas e materiais) que a possam blindar de percalços que desmotivam os adeptos. 

E o que mais custa é ainda a olímpica passividade dos “operadores” em transcreverem as partidas, transmitidas ao vivo ou não, para uma linguagem (pgn) e ficheiros que dêem para as abrir e estudar em programas da especialidade. A utilização desses motores de análise, que qualquer praticante deve ter, pode ser a diferença em perceber ou não a qualidade do jogo e aprender sempre qualquer coisa com eles. Pois essa transcrição que nalguns casos (dos tabuleiros ao vivo) é quase automática chega, quando chega, a demorar dias. Como sou do tempo em que nos principais torneios as partidas de uma jornada eram sempre entregues em boletins (papel!) antes do início da seguinte, passadas à mão ou à máquina, custa—me compreender a preguiça do progresso. 


Cabecinhas pensadoras

E ainda há casos verdadeiramente insólitos. No Nacional Feminino de 2010 disputado em Espinho as partidas não só não foram transmitidas nem publicadas em pgn por… alguém ter considerado ser fraco o nível técnico dos jogos! Esquecem-se que esses registos fazem parte do enredo histórico das competições e são tão ou mais valiosos do que os resultados.  

E acontece que o xadrez nacional feminino em 2010 deu melhores provas do que o masculino nas olimpíadas siberianas. Catarina Leite, no primeiro tabuleiro do campeonato feminino, em Khanty-Mansiysk, apenas perdeu 0,6 pontos-elo, menos do que qualquer um dos cinco elementos da formação masculina (nos absolutos). E foi a única com actuação ligeiramente abaixo das expectativas. Margarida Coimbra (+ 14,9), Ariana Pintor (+ 8,6), Ana Ferreira (+8,4) e Sara Monteiro (+7,7) superaram os resultados. De resto, as classificações colectivas, pouco significativas e não comparáveis foram, ainda assim, lisonjeiras para estas (66º lugar em 115 em contraste com a 75ª posição em 149 da selecção principal). 

Dos progressos das nossas xadrezistas posso até dar testemunho. No Nacional por Equipas realizado em Vila Nova de Gaia (na minha mais desastrada actuação de sempre a vários níveis) os meus resultados ainda poderiam ter sido mais miseráveis se não tivesse pontuado por inteiro com Ana Meireles e Sofia Henriques. Mas deve ter sido por caridade. Com Ana Meireles (16 anos) tinha peão a menos e posição estrangulada sem esperanças quando (lance 29) se deixou perder por tempo. Já com Sofia Henriques, jogando com enorme prudência, forcei simplificações (lance 25) para um final de damas calculando mal que a minha experiente adversária o poderia ter convertido num simples final de reis (29. Dd6+) completamente empatado… 


Os pagantes do costume
   
Em 2007 o Nacional de Veteranos, digno desse nome, foi disputado em Lisboa (Biblioteca Museu da Resistência) e foi ganho por Carlos Correia Lopes. Não houve mais que uma sessão por dia e as jornadas decorreram sempre à mesma hora da parte da tarde. No ano anterior, na Cruz Quebrada (Centro de Estágio) tinha havido um dia com duas sessões e dois dias disparatados com jogos marcados para as 09.00h da manhã. Não há elenco federativo que não goste de tratar os veteranos como cobaias para testes. Afinal também é raro haver um executivo que ultrapasse a fase experimental.

A partir daí o circo do nacional de veteranos entrou em digressão pelo país (pelos campos de concentração dos jogos juvenis): Figueira da Foz (2008), Portimão (2009) e Torres Vedras (2010 e 2011). À custa de quem? Vejamos alguns números:

2005 Lisboa (G.X.Alekhine), 16 de 17 concorrentes foram da zona de Lisboa (94,1%);

2006 Cruz Quebrada, com 16 de 22 concorrentes da zona de Lisboa (72,72%);

2007 Lisboa (M. Resistência), 26 em 33 jogadores de clubes de Lisboa (78,78%);

2008 Figueira da Foz, com 12 em 18 participantes oriundos de Lisboa (66,6%);

2009 Portimão, com 11 em 24 concorrentes de Lisboa (45,8%) a que se juntarem mais seis de Setúbal daria 70,8%;

2010 Torres Vedras, com 22 em 32 elementos de Lisboa (68,7%) com mais quatro de Setúbal (81,25% por junto);

2011 Torres Vedras, previstos 16 em 27 jogadores de Lisboa (59,2%) que somados a mais quatro de Setúbal (totalizarão 74%).

Isto é o contingente de Lisboa é sempre nitidamente maioritário e, nalgumas edições, somados aos representantes de Setúbal (que podem viver muito próximo da capital e atravessar com facilidade o Tejo diariamente) os números tornam-se esmagadores.

Então por que é que os jogadores lisboetas andam a financiar esta prova, com cerca de duas centenas de euros por cabeça (se contar com viagens e alojamento individual condigno) em vez de se subsidiar os escassos jogadores restantes?

Se alguns não se importam de ir “turistar” que o façam, por esses opens e vales, mas tenham o pudor de não chamar a isso campeonatos nacionais e o direito a reclamar uma prova em moldes dignos para o escalão.  

Pelo menos a bem da modalidade. Pois o resto é desolador, pegajoso e rastejante.